Desenvolvido por Andressa Pasqualini em 2022 do livro Visão Sofisticada dos Direitos Humanos e da Justiça Transitória: análise do livro Primo Levi – trilogia de Auschwitz, publicado em 2021 pela Editora Edições Nosso Conhecimento.
Justiça de Transição na América Latina
Infelizmente, é comum, na história da humanidade, esbarrar-se em períodos de grandes violações dos Direitos Humanos nos quais os detentores do poder perpetravam abusos contra indivíduos ou mesmo contra a coletividade motivados pelo preconceito ou pela perseguição política ou racial.
Em especial, ao longo do século XX, registrou-se lamentáveis ocorrências de guerras, genocídio, torturas, desaparecimentos forçados, massacres, dentre outras situações que só receberam a devida atenção com a consequente proteção aos Direitos Humanos a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e após os julgamentos internacionais, mais especificamente os ocorridos nos Tribunais Militares de Nuremberg e de Tóquio.
Observe, portanto, que o desenvolvimento dessa seara está intimamente relacionado à conscientização coletiva e universal dos valores humanitários supra-estatais que devem reger um sistema jurídico.
Nesse sentido, um ponto interessante de se destacar também é a ligação entre a adoção das ideias e estratégias transicionais e a crescente atuação das Nações Unidas em missões de paz somada à aceitação da necessidade de se proteger e promover os Direitos Humanos.
Em que pese a aceitação internacional voltada à proteção dos Direitos Humanos, ao (re)estabelecimento da paz e da democracia, bem como a concreta apuração, investigação e punição de violadores, alguns países demoraram um pouco mais a se adequarem ao novo cenário internacional, tendo sofrido com a impunidade institucionalizada somada à proteção dos abusadores e à invisibilidade das vítimas.
Esse é justamente o caso da América Latina, já que essa preocupação e consequente proteção se deu posteriormente. Isso porque, enquanto o Direito Internacional já levantava a bandeira da importância dos Direitos Humanos na segunda metade do século XX, os países latino-americanos ainda sofriam os abalos dos regimes ditatoriais em uma clara e frequente onda de rupturas do Estado Democrático. Foi o caso do Paraguai (1954), Brasil (1964), Perú (1968), Bolívia (1971) Uruguai (1972), Chile (1973), Argentina (1976), El Salvador (1981) e Honduras (1982).
Para saber mais sobre a relação entre Estado, Ditadura e Democracia e os processos comuns ocorridos na América Latina, acesso o link abaixo e assista ao vídeo do portal educativo chileno Educachile.
Latinoamérica: tensiones entre las democracias y dictaduras.
Link: <https://youtu.be/zwjvvGauS40>. Acesso em 22 de agosto de 2022.
As práticas controversas da época da ditadura e a resistência interna acabaram levando ao enfraquecimento do regime, de modo que a América Latina inicia uma onda de redemocratização (chamada de terceira onda) que começou em meados dos anos 1980.
Na tentativa de se enfrentar o passado, cada país adotou suas próprias estratégias internas refletindo em um leque de distintos processos de transições que incluíam mecanismos de reparação que podem ser divididos em quatro grupos:
Estes distintos mecanismos, que podem incluir, por exemplo, persecução doméstica, reformas institucionais e até mesmo judiciais, novos sistemas de monitoramento, comissões da verdade, dentre outros, trazem importantes benefícios à sociedade na medida em que transformam uma verdade individual em uma verdade social, reconhecida não apenas pelo Estado como pelos próprios perpetradores.
Além das diferenças no que tange aos métodos para a transição, o fator “tempo” também diverge muito de país para país de modo que a intenção de revisitar o passado para se proceder à uma justiça transicional foi/é tomada a passos lentos.
Por exemplo, enquanto na Argentina e no Chile foi instaurada uma Comissão da Verdade no ano seguinte ao fim dos seus respectivos períodos ditatoriais, o Peru levou 3 anos, o Uruguai 4 anos, o Paraguai 19 anos e o Brasil 26 anos.
Além disso, segundo o Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), de 1990 até 2010 na América Latina, havia 69 casos de chefes de Estado envolvidos em crimes da ditadura, dos quais somente 35 foram levados ao Poder Judiciário e destes apenas 17% resultaram em condenação.
No que diz respeito a julgamentos no âmbito penal, tem-se, igualmente, grande variação entre os países da América Latina. Isso porque, no período pós ditadura, a democracia ainda era muito frágil e a vontade de mantê-la mais estável e duradoura levou à substituição da justiça criminal por outras medidas de satisfação às vítimas, principalmente a reconstrução dos fatos e a reparação, ainda que simbólica.
Assim, a impunidade perdurou por muitos anos (e em alguns locais resiste até hoje), tendo sido favorecida por marcos legislativos como, por exemplo, da Lei do Ponto Final (1986 - Argentina), que colocava um prazo de 60 dias para ajuizar ações contra militares por violações de Direitos Humanos, e da Lei da Obediência Devida (1987 - Argentina), que garantia impunidade a militares com causas abertas.
O ápice dessa impunidade argentina se dá com uma série de decretos, conhecidos por “Indultos de Menem”, que foram sancionados entre 1989 e 1990 e que indultavam civis e militares da época. Posteriormente, em 1992, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concluiu que tais leis eram incompatíveis com o cenário internacional de proteção e promoção dos Direitos Humanos de modo que, em 2003, o Congresso Nacional Argentino acabou declarando as suas nulidades e possibilitando a reabertura de processos.
Como reflexo, em 2007 se iniciou, em Buenos Aires, o primeiro julgamento oral contra militares da ditadura tendo sido presos os membros da junta militar, já que o perdão recebido outrora também fora considerado inconstitucional pela Suprema Corte argentina.
O Uruguai, por sua vez, experimentou algo semelhante, quando da promulgação da Lei de Caducidade da Reclamação Punitiva do Estado, em 1986, que garantiu a impunidade por muitos anos, até que em 2009, graças às brechas encontradas e a uma reinterpretação, foi possível prosseguir com julgamentos e condenações.
Assim, em 2009, foram decretadas penas de 20 a 25 anos de prisão para oito ex-militares e policiais, o que se tornou um marco para a revisão das violações aos Direitos Humanos no Uruguai, vez que representam as primeiras condenações em primeira instância que abordavam casos de repressão ditatorial e Direitos Humanos.
Enfim, pode-se dizer que, entre os 16 dos 19 países da América Latina que passaram por ditadura durante a segunda metade do Século XX e que adotaram leis de anistia, todos acabaram por reinterpretar suas leis ou mesmo declará-las inconstitucionais, promovendo os consequentes julgamentos. A única exceção, até 2021, era o Brasil, quando contou com a sua primeira condenação, em primeira instância, de um agente de Estado por violações aos Direitos Humanos, que fora derrubada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que deu provimento ao recurso da defesa.
Sobre a dicotomia entre países vizinhos e como a Argentina é tida como maior exemplo da aplicação da Justiça Transicional e o Brasil o seu oposto, sugere-se a leitura do artigo da BBC News Brasil, por Camilla Veras Mota.
Link: <https://bbc.in/3ByLJ5p>. Acesso em:
Foi possível observar que os mecanismos da Justiça Transicional são vários, sendo que cada país adota uma estratégia própria e em seu próprio tempo. Assim, em que pese alguns lugares do globo terem se voltado para a proteção e promoção dos Direitos Humanos ainda na metade do século XX, na América Latina houve uma demora maior, de modo que o primeiro julgamento contra militares da ditadura se deu em 2007, na Argentina, e tendo o Brasil postergado até 2011 para criar a sua Comissão da Verdade e até 2021 para condenar, em primeira instância, pela primeira vez um agente de Estado.
Referências
Bibliográficas
Ribero, Katherine. (2021). Visão Sofisticada dos Direitos Humanos e da Justiça Transitória: análise do livro Primo Levi – trologia de Auschwitz. Mauritius: OmniScriptum Publishing Group.
Hollanda, Cristina Buarque de, Batista, Vanessa Oliveira, Boiteux, Luciana. (2010). Justiça de Transição e Direitos Humanos na América Latina e na África do Sul. [Online]. Acesso em 22 de agosto de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3eSq40k
Pons, Órcar de Álamo. (2010). Dictar La Memória: justicia transicional en américa latina. [Online]. Acesso em 22 de agosto de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3U8VbF2
Lima, Rafael José de Abreu de, Castro, Carla Appollinario de. (2016). A Experiência Latino-americana de Justiça de Transição: uma reflexão comparativa à luz dos Direitos Humanos. [Online]. Acesso em 22 de agosto de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3eNWid0
Martínez, Maitane Arnoso, Rovira, Darío Páez, Cárdenas, Manuel, Zubieta, Elena, Espinosa, Agustín, Bilbao, Marian. (2015). Representaciones Sociales Del Passado y Rituales de Justicia Transicional en América Latina. [Online]. Acesso em 23 de agosto de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3BDWCE3
Canineu, maria Laura. (2021). Primeira condenação por crimes da ditadura no Brasil. [Online]. Acesso em 23 de agosto de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3QFy7uA.
Livro de Referência:
Visão Sofisticada dos Direitos Humanos e da Justiça Transitória: análise do livro Primo Levi – trilogia de Auschwitz
Katherine Ribeiro
Editora Edições Nosso Conhecimento, 2021.